Homenagear a cidade de Niterói, no mês de seu aniversário, foi a proposta inicial do SESC de Niterói para esta exposição. A homenagem se retorce e converte em experimentação, vivência e degustação dessa cidade através do olhar de oito artistas contemporâneos. Essas ações – que bem poderiam ser ações cotidianas –, quando estimuladas por uma proposta visual, podem vir a revelar lugares ou situações que, por já fazerem parte de nosso ambiente rotineiro, muitas vezes passam despercebidos mesmo por um olhar atento ou uma percepção mais apurada.
O argumento curatorial foi pensar a cidade de Niterói em sua condição atual de espaço urbano e cultural, a fim de perceber como esse contexto reverbera diretamente nas práticas sociais, seja de alguém que se relaciona cotidianamente com a cidade ou de um artista que acaba de conhecê-la.
Aos artistas foi sugerido refletir acerca de três trilhas conceituais e investigativas norteadoras da mostra, que apesar de distintas podem e devem saudavelmente mesclar-se entre si. Abordagens questionadoras da relação entre individuo, espaço e lugar.
A proposta foi incitar uma nova maneira de olhar a paisagem ou o que compreendemos como paisagem, e proporcionar encontros com lugares e detalhes da rede urbanística de uma cidade sedutora por seus recantos e encantos naturais, além de apresentar exemplos da arquitetura colonial e moderna. Como em uma expedição, o desafio foi explorar esse município conhecido como “cidade-sorriso” e que, conta a História, foi desejado e fundado pelo cacique tupi Araribóia; serviu de ponto estratégico de defesa da Baía de Guanabara; abrigou a capital do antigo estado do Rio de Janeiro; protagonizou uma das maiores construções rumo à rápida modernização nacional (a Ponte Rio-Niterói) e hoje vive crescente conscientização ecológica que leva à preservação de suas belas praias e reservas de Mata Atlântica e a projetos pioneiros ligados à coleta seletiva de lixo.
Observando por outro viés, esses privilégios naturais são, em sua maioria, ameaçados por um deficiente planejamento urbanístico, que acarreta ocupações irregulares e o processo de favelização das encostas da cidade. Conseqüência de sua ótima localização geográfica – vizinha à cidade do Rio de Janeiro – e de todo o marketing político feito a partir do estandarte de “cidade qualidade de vida”, Niterói vive um crescimento populacional carente de infra-estrutura básica e forte especulação imobiliária. A possibilidade de apontar o perfil contraditório da cidade e exercer criticamente a posição de ser artista em um contexto social e cultural como esse também foram traduzidos poeticamente em algumas das obras reunidas nesta exposição.
Por fim, ajusta-se o foco nas práticas relacionais da urbe, no indivíduo e sua situação presente, lançando um olhar aguçado para essa sociedade com cerca de 474 mil habitantes, que se caracteriza, todavia, por conexões de proximidade próprias de círculos familiares e de amizade. A idéia aqui foi vivenciar contextos específicos, percebendo sua dinâmica e como esse espaço social é estruturado por conflitos espontâneos.
Esta mostra, que conta com os artistas Analu Cunha, Cristina Ribas, Daniel Murgel, Gustavo Duarte, Hugo Richard, Pontogor, Tomas Reyes e Vicente de Mello, é o inicio de uma parceria com o SESC de Niterói que viabilizará em 2009 uma série de exposições, palestras e interferências na cidade. O projeto visa incentivar o uso do espaço urbano como laboratório artístico e de idéias, instigando um pensamento crítico, político e ativo sobre a cidade, seus atores e conjunções estruturalmente instáveis que atraem e repelem simultaneamente e na mesma intensidade.
Beatriz Lemos - Curadora
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Analu Cunha
João, a cruz e o horizonte, 2008
João, a cruz e o horizonte é um vídeo de observação: a artista contempla a paisagem e o espectador observa os ângulos definidos por ela.
Duas fortalezas se comunicam visualmente através da Baía de Guanabara. Com o objetivo de proteger um território e atentar para quem se aproxima, os fortes militares de São João e Santa Cruz da Barra carregam hoje em seus canhões e prisões apenas a História. Edificadas em pontos estratégicos que permitem perfeita visão panorâmica da entrada da Baía e localizadas, propositalmente, uma em frente à outra, as fortalezas – das cidades do Rio e de Niterói – foram eleitas por Analu Cunha como pontos de observação para apreender a intimidade dessa paisagem.
Uma espreita a outra, na tentativa de reconhecer seu próprio exemplo através do óculo. Na obra contemplamos a paisagem como se a estivéssemos vendo por meio das frestas para entrada de ar e de luz – elemento comum em navios ou habitações antigas –, que também servem para o posicionamento de canhões. Esse olhar espião, traduzido pela posição da câmera à deriva, contrasta com a objetividade da busca por algo.
A carga simbólica dos fortes e a apresentação das imagens escolhidas pela artista fazem do vídeo de Analu uma síntese da relação entre essas duas cidades, que se miram constantemente. Neste trabalho, o contínuo, que surge do encontro dos dois horizontes, se torna o alvo a ser atingido.
João, a cruz e o horizonte é um vídeo de observação: a artista contempla a paisagem e o espectador observa os ângulos definidos por ela.
Duas fortalezas se comunicam visualmente através da Baía de Guanabara. Com o objetivo de proteger um território e atentar para quem se aproxima, os fortes militares de São João e Santa Cruz da Barra carregam hoje em seus canhões e prisões apenas a História. Edificadas em pontos estratégicos que permitem perfeita visão panorâmica da entrada da Baía e localizadas, propositalmente, uma em frente à outra, as fortalezas – das cidades do Rio e de Niterói – foram eleitas por Analu Cunha como pontos de observação para apreender a intimidade dessa paisagem.
Uma espreita a outra, na tentativa de reconhecer seu próprio exemplo através do óculo. Na obra contemplamos a paisagem como se a estivéssemos vendo por meio das frestas para entrada de ar e de luz – elemento comum em navios ou habitações antigas –, que também servem para o posicionamento de canhões. Esse olhar espião, traduzido pela posição da câmera à deriva, contrasta com a objetividade da busca por algo.
A carga simbólica dos fortes e a apresentação das imagens escolhidas pela artista fazem do vídeo de Analu uma síntese da relação entre essas duas cidades, que se miram constantemente. Neste trabalho, o contínuo, que surge do encontro dos dois horizontes, se torna o alvo a ser atingido.
Cristina Ribas
Dois Mares, 2008
Quantificar o processo artístico é o que a artista Cristina Ribas pretende realizar através de sua intervenção no fluxo de trabalho informal. Sua obra propõe uma equivalência de trabalho e remuneração entre uma artista e mulheres que se ocupam da distribuição de folhetos publicitários no centro das cidades do Rio e de Niterói. Cálculos matemáticos de horas de serviço prestado, custo de cada diária de trabalho e pró-labore artístico para esta exposição ditam a quantidade de travessias entre as duas cidades que Cristina deverá fazer.
A ação consistiu na troca de folhetos comuns por folhetos carimbados no verso, no decorrer do percurso do centro do Rio ao centro de Niterói. A artista, que vem recolhendo este material há cerca de dois anos, quer infiltrar seu universo poético no labor rotineiro e mecânico dessas mulheres que se tornam invisíveis no caos urbano. Com o desejo (utópico) de livrá-las (mais cedo) dessa função, sua proposta torna-se uma metáfora da possibilidade do artista como trabalhador ativo em uma sociedade.
Como remunerar o processo artístico? Quanto vale o tempo do artista e sua produção imaterial? Estas são questões que a artista deseja levantar através de práticas relacionais com essas personagens urbanas que encenam diariamente proximidade física e distância social.
Dois mares baseia-se em trocas e trânsitos entre pessoas que se situam entre o anonimato e uma multiplicidade de papéis em diferentes círculos, momentos e situações. Atenta a tais atividades singulares e plurais e procurando ler a cidade no tempo-espaço dessas mulheres, a artista busca atingir, por indução, significados mais abrangentes entre\dessas duas cidades.
Quantificar o processo artístico é o que a artista Cristina Ribas pretende realizar através de sua intervenção no fluxo de trabalho informal. Sua obra propõe uma equivalência de trabalho e remuneração entre uma artista e mulheres que se ocupam da distribuição de folhetos publicitários no centro das cidades do Rio e de Niterói. Cálculos matemáticos de horas de serviço prestado, custo de cada diária de trabalho e pró-labore artístico para esta exposição ditam a quantidade de travessias entre as duas cidades que Cristina deverá fazer.
A ação consistiu na troca de folhetos comuns por folhetos carimbados no verso, no decorrer do percurso do centro do Rio ao centro de Niterói. A artista, que vem recolhendo este material há cerca de dois anos, quer infiltrar seu universo poético no labor rotineiro e mecânico dessas mulheres que se tornam invisíveis no caos urbano. Com o desejo (utópico) de livrá-las (mais cedo) dessa função, sua proposta torna-se uma metáfora da possibilidade do artista como trabalhador ativo em uma sociedade.
Como remunerar o processo artístico? Quanto vale o tempo do artista e sua produção imaterial? Estas são questões que a artista deseja levantar através de práticas relacionais com essas personagens urbanas que encenam diariamente proximidade física e distância social.
Dois mares baseia-se em trocas e trânsitos entre pessoas que se situam entre o anonimato e uma multiplicidade de papéis em diferentes círculos, momentos e situações. Atenta a tais atividades singulares e plurais e procurando ler a cidade no tempo-espaço dessas mulheres, a artista busca atingir, por indução, significados mais abrangentes entre\dessas duas cidades.
Daniel Murgel
Casa Convencional, 2008
Os desenhos de Daniel Murgel provocam o público a encontrar, em um jogo irônico de reflexão, suas prisões individuais, sociais ou culturais. Gaiolas remodeladas como casas evidenciam o processo de pesquisa do artista, que tem como ponto forte de sua produção a busca pela tridimensionalidade do desenho.
Daniel constrói situações e objetos imaginados a partir da exploração do desenho. Todos em aquarela e em cores variadas e vibrantes, os esboços – que depois se tornam a própria obra – remetem a algo do universo dos livros de contos infantis, onde as imagens, quando acompanhadas de histórias e um pouco de imaginação, se tornam vivas e fantásticas. Essa atmosfera lúdica e poética, Daniel proporciona quando realiza uma instalação ou uma escultura, que sempre são acompanhadas de suas representações no papel.
Para esta mostra, ele apresenta seu modelo de “casa convencional”, espécie de habitação de classe média para pássaros. A escultura se encontra em uma das árvores do espaço externo do Sesc Niterói, o que possibilita a visita dos mais interessados. O artista os convida a entrar na habitação onde o piso está coberto de terra, alpiste e outros grãos. Alimento para os que decidirem entrar ou novas vidas que podem germinar.
Casa convencional dialoga com questões sociais típicas dessa cidade, como a especulação imobiliária que cada vez mais reduz os espaços de moradia e convivência em sociedade. Contudo, a obra nos remete a algo além desse contexto específico ao atentar para situações em que nos encontramos como pássaros em gaiolas, observando o mundo ao redor, impossibilitados de nos acercar ou até mesmo de sair. Situações que protagonizamos em distintos momentos, fases ou contextos de nossas vidas. Neste trabalho – que provavelmente deve se desmembrar em uma série – Daniel investiga a contradição entre ausência e presença, as escolhas individuais (afinal, os pássaros vão entrar ou não vão entrar?) e as conseqüências de nossas escolhas.
Então, em que gaiola você se imagina?
Os desenhos de Daniel Murgel provocam o público a encontrar, em um jogo irônico de reflexão, suas prisões individuais, sociais ou culturais. Gaiolas remodeladas como casas evidenciam o processo de pesquisa do artista, que tem como ponto forte de sua produção a busca pela tridimensionalidade do desenho.
Daniel constrói situações e objetos imaginados a partir da exploração do desenho. Todos em aquarela e em cores variadas e vibrantes, os esboços – que depois se tornam a própria obra – remetem a algo do universo dos livros de contos infantis, onde as imagens, quando acompanhadas de histórias e um pouco de imaginação, se tornam vivas e fantásticas. Essa atmosfera lúdica e poética, Daniel proporciona quando realiza uma instalação ou uma escultura, que sempre são acompanhadas de suas representações no papel.
Para esta mostra, ele apresenta seu modelo de “casa convencional”, espécie de habitação de classe média para pássaros. A escultura se encontra em uma das árvores do espaço externo do Sesc Niterói, o que possibilita a visita dos mais interessados. O artista os convida a entrar na habitação onde o piso está coberto de terra, alpiste e outros grãos. Alimento para os que decidirem entrar ou novas vidas que podem germinar.
Casa convencional dialoga com questões sociais típicas dessa cidade, como a especulação imobiliária que cada vez mais reduz os espaços de moradia e convivência em sociedade. Contudo, a obra nos remete a algo além desse contexto específico ao atentar para situações em que nos encontramos como pássaros em gaiolas, observando o mundo ao redor, impossibilitados de nos acercar ou até mesmo de sair. Situações que protagonizamos em distintos momentos, fases ou contextos de nossas vidas. Neste trabalho – que provavelmente deve se desmembrar em uma série – Daniel investiga a contradição entre ausência e presença, as escolhas individuais (afinal, os pássaros vão entrar ou não vão entrar?) e as conseqüências de nossas escolhas.
Então, em que gaiola você se imagina?
Gustavo Duarte
Trabalho feito, 2008
Trabalho feito é um “vídeo-despacho”, como bem define o artista. Como uma oferenda à cidade que é berço da umbanda – única religião tipicamente brasileira e que está ligada aos ritos afro-indígenas –, o vídeo, aqui exposto conjuntamente com uma fotografia, sintetiza a relação de um artista com este lugar que, ao mesmo tempo em que é porto seguro, o direciona a buscar constantemente outros caminhos e respostas. A condição de ser artista em Niterói é algo intrinsecamente relacionado a um movimento rotineiro de ir e vir, sair e entrar na cidade em direção ao Rio de Janeiro, seja por trabalho, estudo ou em busca do alimento poético e visual de uma metrópole.
A precariedade das imagens em parceria com um áudio sedutor é um convite a degustar esta cidade que se destaca pela relação próxima de seus habitantes com o mar e a natureza, além de toda a carga histórica de possuir como símbolo um índio fundador – referências visíveis na obra de Gustavo.
Uma verdadeira ode a Iemanjá e às águas escondidas.
Trabalho feito é um “vídeo-despacho”, como bem define o artista. Como uma oferenda à cidade que é berço da umbanda – única religião tipicamente brasileira e que está ligada aos ritos afro-indígenas –, o vídeo, aqui exposto conjuntamente com uma fotografia, sintetiza a relação de um artista com este lugar que, ao mesmo tempo em que é porto seguro, o direciona a buscar constantemente outros caminhos e respostas. A condição de ser artista em Niterói é algo intrinsecamente relacionado a um movimento rotineiro de ir e vir, sair e entrar na cidade em direção ao Rio de Janeiro, seja por trabalho, estudo ou em busca do alimento poético e visual de uma metrópole.
A precariedade das imagens em parceria com um áudio sedutor é um convite a degustar esta cidade que se destaca pela relação próxima de seus habitantes com o mar e a natureza, além de toda a carga histórica de possuir como símbolo um índio fundador – referências visíveis na obra de Gustavo.
Uma verdadeira ode a Iemanjá e às águas escondidas.
Hugo Richard
Relíquias, 2008
Hugo Richard pinta memórias. Coletivas ou individuais, suas lembranças são adquiridas em livros, vivências e na prática da observação. Além de suas telas, o artista registra sua busca por apreender o afeto das coisas, pessoas e lugares em objetos do uso cotidiano, como tacos de piso de madeira ou pratos de cerâmica, suportes nutridos de identidades e relatos.
Em Relíquias Hugo transporta para a louça a história dessa cidade desde sua formação até os dias atuais – este período representado pela presença e pelo olhar do artista. Essa série de pinturas tem como foco o período da França-Antártica, quando toda a região da Guanabara se encontrava sob domínio francês e que (no desenrolar dos fatos) resultou na fundação de algumas cidades localizadas ao redor da Baía.
Reproduzindo mapas, brasões e personagens históricos, Hugo investiga relações próprias desse passado longínquo, como o jogo ambíguo de interesses entre portugueses, franceses e as tribos indígenas Tupi-Guarani e Tamoio.
A união entre a delicadeza da porcelana – pratos obtidos em uma longa peregrinação a antiquários – e a pintura minuciosa do artista faz desse trabalho a imagem fiel da memória, que mesmo sendo nosso único vínculo com o passado se sustenta em sua fragilidade, podendo facilmente quebrar-se e desaparecer.
Hugo Richard pinta memórias. Coletivas ou individuais, suas lembranças são adquiridas em livros, vivências e na prática da observação. Além de suas telas, o artista registra sua busca por apreender o afeto das coisas, pessoas e lugares em objetos do uso cotidiano, como tacos de piso de madeira ou pratos de cerâmica, suportes nutridos de identidades e relatos.
Em Relíquias Hugo transporta para a louça a história dessa cidade desde sua formação até os dias atuais – este período representado pela presença e pelo olhar do artista. Essa série de pinturas tem como foco o período da França-Antártica, quando toda a região da Guanabara se encontrava sob domínio francês e que (no desenrolar dos fatos) resultou na fundação de algumas cidades localizadas ao redor da Baía.
Reproduzindo mapas, brasões e personagens históricos, Hugo investiga relações próprias desse passado longínquo, como o jogo ambíguo de interesses entre portugueses, franceses e as tribos indígenas Tupi-Guarani e Tamoio.
A união entre a delicadeza da porcelana – pratos obtidos em uma longa peregrinação a antiquários – e a pintura minuciosa do artista faz desse trabalho a imagem fiel da memória, que mesmo sendo nosso único vínculo com o passado se sustenta em sua fragilidade, podendo facilmente quebrar-se e desaparecer.
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